14 fevereiro 2006

Nono Maledeto

O César, meu querido marido, é professor por aptidão e opção... ele adora a educação, trabalhar com jovens e incentivar neles a busca do conhecimento. Adora falar, discutir e instigar para que a busca do conhecimento se instale. É uma pena que neste nosso Brasil a educação é tão pouco valorizada. Mas sabemos que é ela o caminho para o desenvolvimento e crescimento do país. Quantos jovens tem seus talentos desperdiçados pela falta de investimento na educação, esporte e cultura! Fazer o quê! Um povo educado saberia lutar por melhores e maiores condições e não é bem isso que os nossos governantes querem!
Além de professor, gosta muito de escrever. Ganhou dois prêmios pelos seus contos.
Todos estes contos estão guardados no armário, o que é um pecado, com excessão destes dois textos, publicados em livros na ocasião!
Bons textos ficam escondidos no fundo do armário ou nos "meus documentos" do computador.
Sou suspeita a falar, mas meu maridão tem talento para escrever. Vejamos se mais alguém terá a mesma opinião!
O texto abaixo, chamado "Nono Maledeto" foi escrito em homenagem aos seus avós e bisavós, de origem italiana. Com este conto ele ganhou o Prêmio Ignácio de Loyola Brandão - Biblioteca Pública Mário de Andrade - Araraquara - SP

"NONO MALEDETO


Berto era um maledeto, um putom, como dizia sua mama, uma italiana de sangue quente e coração generoso. O velho Berto há muito perdera a mãe, mas restavam-lhe os filhos, netos e os bisnetos, dois bezerrinhos de fome voraz, a mesma fome que o trouxera da Itália há mais de setenta anos. Restava-lhe também esperar a morte, pois quando batia à porta dos seus quase noventa anos, a doença já lhe havia minado completamente as forças e o desejo de viver. Acamado desde o início daquele ano, Berto fazia, então, o balanço de sua vida, percebendo que havia muito por ajustar, muito por fazer, mas que não se arrependia de nada, nem mesmo das blasfêmias professadas contra a Madona.
A família já sentia no ar o cheiro da dona morte. A agonia minava o velho leão dia-a-dia, sugando-lhe toda a exuberância física. Ele apanhara o “resfriadinho de merda” e o “desgraciato” galopou pneumonicamente até prostrar-lhe. Parecia uma árvore velha e frondosa que começava a desgalhar, a perder a seiva e a pujança. Intimamente sabia que não ia durar muito, sabia que Deus lhe havia dado anos felizes, muitas lutas e dores, mas seu tempo esvaía, feito resto de areia a extinguir-se na ampulheta. Quando batia o sexto mês que estava acamado, uma crise mais forte e uma infecção acabaram com os últimos vestígios de sua resistência heróica e Berto entrou em coma profundo. Como era seu desejo não ser levado para um hospital, a família improvisou uma pequena UTI e passou a revezar-se no quarto do moribundo, esperando que dona Maledeta viesse cortar o fio já tênue daquela longa vida. Estranhos presságios andavam nos corredores na casa ampla e ventilada.
Berto, que temera a morte por tantos anos, descobriu que estar em coma é estar meio morto, pois não sentia mais o corpo, apenas sua cabeça parecia funcionar. Sempre sabia qual dos filhos estava no quarto, mas não conseguia articular palavra alguma. Muitas vezes lutava para mover um dedo e o esforço feito daria para mover um cavalo. Lentamente aceitou a paralisia e notou, surpreso, que sua mente tornava-se clara como o sol, e ele podia ver mentalmente o filme da sua vida passando vagarosamente ante os olhos apagados. Parecia um filme em retrospecto, pois começou por ver o dia do “resfriadinho” e foi voltando. Viu o nascimento do filho mais novo, Giovanni, quando ele, Alberto, já contava setenta anos. Passou-lhe pela mente o nascimento de cada filho e, até mesmo, o dia em que Giuliano, o mais velho, arrepiou a família ao falar o primeiro palavrão. Falar palavrão era um mal de família, que Berto tentara mudar quando nasceu o primogênito, mas o menino o convenceu de que aquilo era mesmo um mal do sangue genovês, com o qual teria de conviver. Mal completara sete anos e um belo dia saiu-se com o palavrório: “ Puta que o pariu Madona mia”. O pai assustou-se, de início, e depois continuou a falar seus palavrões preferidos.
Berto lembrou-se de suas lutas para criar a numerosa família, assistiu novamente a cada uma das doenças dos seus doze filhos. Ao rever o trabalho duro nas plantações de café em Fernando Prestes, deixou que duas lágrimas furtivas rolassem silenciosas. Como era bom trabalhar, mover os braços com agilidade e sentir o cheiro da plantação logo pela manhã. Como era bom tocar o orvalho nas folhas e, de chapéu no cocoruco, sentir o sol levantar-se, espreguiçando e lançando aquele calor medonho que devorava até a última gota de orvalho. Reviu seu corpo jovem, seus braços fortes e lembrou-se de Malvina. Como era bela a maledeta!!
Lembrou-se da viagem para o interior e de quantos dias passaram em lombo de burro, atravessando estradas e fazendas, ruminando dentro dos trens da Companhia Paulista que mais pareciam lesmas com febre de tão lerdos. Recordou-se da cidadezinha que ainda ensaiava os primeiros passos, do fazendeiro duro e exigente. Lembrou-se novamente de Malvina, como era bela a maledeta!!
O primeiro beijo ainda estava vivo em sua boca envelhecida e murcha. Sentiu como se todo o frescor o procurasse, para excitá-lo como naquele dia, em meio ao cafezal maduro. O coração cansado, feito vela a extinguir-se, bateu novamente quando o filme da memória mostrou-lhe Malvina, a plantação, o primeiro beijo e o amor feito na rua do cafezal, amor com cheiro de terra, de broto e de flor, cheirando à vida e ao sereno em noite quente. Desejou viver, amar, refazer cada passo de sua longa jornada e percebeu, enquanto seu peito arfava, que não trocaria um único dia de sua vida pelo dia mais feliz de um soberano qualquer. Não trocaria sequer o dia em que fora despejado de sua casa pelo fazendeiro, carregando seus sete filhos. Nem isso trocaria!!
“Quantos palavrões, dio bono”__ pensou__ revirando-se um pouco e despertando o filho que dormia ao lado. Para cada ocasião, para cada dia ou emoção, era assim que Berto e sua família expressavam emoções : porco cano, dio santo, madona mia, maledeto, desgraciato, porco dio, dio cano, porca madona...
Lembrou-se dos primeiros anos, estava agora com vinte primaveras de vida. Olhou para o filme do tempo com seus olhos apagados e não acreditou que o “filho da puta” lhe tivesse feito tantos estragos. Ali estava ele, novamente com vinte anos, falando um português arrastado e confuso e sendo repreendido pelo padre Geremia, pois prorrompera em mais uma crise de palavrões ao não conseguir pronunciar uma palavra: perolilipipo, parolopipo, e sorriu, agora aos noventa anos, ao ver-se tentando por dias seguidos pronunciar aquele palavrão descomunal: pa-ra-le-le-pi-pe-do!!.
O que Berto nunca falara, mas todos sabiam, é que falar palavrões era uma herança ancestral, uma necessidade do sangue italiano, era mesmo a força da família. Italiano que não fala palavrão não é italiano, é putom.
Berto tossiu e seu filho Genaro assustou-se. O velho pinheiro começava a cair e nada mais deteria sua queda, a não ser o chão, sempre macio e acolhedor, a terra que ele tão bem conhecia, sempre disposta a transformar morte em vida e vida em morte. A tosse aumentou, ele engasgou e Genaro pediu ajuda. Em poucas horas lá estavam todos: doze filhos, vinte e oito netos e os dois bezerrinhos. O velho rangia feito carvalho a retorcer-se, lutando bravamente para permanecer em pé.
Passado o momento mais difícil, uma luzinha brilhou na consciência e a tela da memória voltou a passar o filme da sua vida. Algo parecia desejar, quase que obrigá-lo a rever toda a trajetória. Estava agora com quinze anos, jovem e ágil. O porto de Santos pareceu-lhe a porta do paraíso, a entrada do céu. A imensidão do porto, as carroças abarrotadas de café, o cheiro que estaria por quase toda a vida em suas narinas européias. Sentiu renascer na alma os sonhos dos quinze anos, as esperanças que toda a família trouxera na bagagem. Contemplou os olhos inquietos do velho Chineze, seu pai, e o rostinho magro e bonito de sua mama, sempre tranqüila, explodindo em crises de palavrão que animavam toda a casa, colocando-a em andamento. O navio sujo e apinhado de gente, as noites intermináveis cruzando o oceano, os gemidos abafados que subiam da sacaria vazia, gemidos de dor e prazer preenchendo a noite, andando nos corredores do navio e morrendo no mar silencioso e negro. A língua de seu povo tão sonora e cheia de encantos. Sim, ele podia novamente falar sua língua, como se reaprendesse instantaneamente o velho linguajar das colinas da Itália. As músicas da infância e as festas na vila. Reviu os olhinhos de sua prima e o dia em que fugiram para o estábulo, as carícias apressadas e o medo do inferno, pois o demo andava sempre por perto. Notou o movimento no porto e fez toda a viagem de volta, cruzando o mar e desembarcando nas costas da velha pátria, “Mia maledeta Itália”. Contemplou-se ainda menino, correndo pelos caminhos estreitos de uma pequenina vila, brincando e comendo o mingau aguado, pois era uma época de fome e guerra. Que guerra? Não sabia, aliás, nunca soube. Sabia apenas que por sua causa e graças a fome, a família decidira imigrar e aventurar-se no mundo novo, nas terras brasileiras. Sua mente tinha noventa anos, mas, naquele momento, ele pensava como um menino de catorze ou treze. Lembrou-se de todos os familiares que preferiram ficar na Itália, lembrou-se até mesmo do nome de cada um dos primos e amigos. “Quanto tempo, dio bono! ”.
Começou a falar como criança, a pedir mingau, sopa e ninguém entendia o que estava havendo. Os filhos imaginaram que delirava e o médico, chamado às pressas, aplicou-lhe um tranqüilizante, mas Berto queria correr, comer e brincar, fugir da guerra e encontrar a terra bonita e promissora de que seus pais falavam sem cessar. Suas veias intumesceram, seus braços e pernas pediam movimento, ansiavam pelos caminhos estreitos e longos, seus ouvidos queriam novamente o barulho das rodas do carro de boi cortando a plantação, o canto triste do velho Nelo conduzindo a boiada pelas estradas intermináveis. Ele queria viver, sentir o corpo suado, as mãos vivas e os ramos frios do café, o sabor da rubiácea, o mundo avermelhado numa pintura impressionista, traços vivos e penetrantes. O café maduro, as peneiras sacudindo a tristeza dos dias. Ele queria...queria novamente o sofrimento e a alegria dos dias em que era um homem, um vivente de rosto avermelhado e alma de fogo. Queria o amor e o sabor do vinho seco e forte queimando sua garganta, aquecendo suas entranhas de moço. Macarrão com vinho e polenta doce. Santo dio, até isso queria. Os dias de baile e festa, as quermesses da igreja de Santa Genoveva, o riso solto das moças e seus vestidinhos de roça, o som confuso da sanfona do Girdo Magulin, sentado sob o lampião de luz embaçada, os insetos cruzando o ar, morrendo na claridade do vidro quente. A festa varava a noite, e a escuridão enchia-se de gemidos abafados.
Mais uma crise de tosse, a garganta parecia fechar-se ante a infecção. Ele estertorava, gemendo. Tinha agora pouco menos de dois anos, mas lembrava-se de tudo, de cada detalhe, até mesmo das roupas e do cheiro de alho das mãos de sua mama, uma bela rapariga de seios fartos e olhos claros como o céu da sua vila. Viu-se com um ano, abobalhado, descobrindo o mundo, viu-se com seis meses, curvadinho, chupando o dedo do pé, mamando e sujando as fraldas, o mundo nublado, parecendo todinho feito de nuvens a mover-se por todos os lados. Lembrava-se perfeitamente dos seios e do leite quente escorrendo-lhe pela garganta, adoçando-lhe a boca pequenina. Lembrou-se de alguns palavrões. Desde esse tempo lá estavam os maledetos: “Tuti putom”.
Deu um gemido mais alto, respirou com dificuldade e entrou na contagem regressiva, inspirava e expirava, parava e voltava a ligar a máquina, feito carro velho que engasga para funcionar. Dona Maledeta olhou-o complacente, mas ele mandou-a à merda. A raiva lhe permitiu respirar, lutar ainda contra a derradeira ruína. A putona aproximou-se, disse que era amiga, que vinha pôr fim aos seus sofrimentos, que sopraria a vela trêmula, que se deixasse levar, mas ele resistiu e descarregou o palavrório: "Vai a merda filha da puta, bruta escangalhada, porca putana."
Viu-se dentro da barriga da mama, encolhidinho e miúdo, nadando, atravessando um oceano escuro e aquecido, um mundo feito de silêncios e ruídos distantes, feito de sais e sabores estranhos, uma travessia de nove meses. Sentiu o cheiro do mundo nas ventas pequeninas e ouviu a mama gritando de dor e dizendo aos berros:
__ Nasce desgraciato. Nasce maledeto. Ragazzo de uma porca mama!!
E Berto nasceu."


César Sátiro - Março / 98

2 Comments:

At 17/1/07 13:10, Anonymous Anônimo said...

Excelente! adorei
Andrea

 
At 14/11/09 12:52, Anonymous Anônimo said...

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